Pode
parecer estranho que uma peça escrita por Nelson Rodrigues seja direcionada a
quem não gosta das obras dele. Mas devemos considerar que este é um espetáculo
de raras montagens. As obras mais conhecidas do dramaturgo estão repletas de
palavrões e, muito diferente de “A vida como ela é”, “Anjo Negro” não possui
momentos de humor. Talvez exceto pelos risos retirados pela plateia pelas
atrizes que fazem as primas solteironas e virgens de Virgínia.
O
texto de Nelson já nasce intimista. Somado à interação com o público no palco
montado sob as orientações do famoso diretor Grotowski, difícil dizer se
haveria forma mais intimista de se apresentar tal obra. A cenografia da Cia
Mosaico, assinada por Antônio de Pádua, usa uma grande estrutura central. É ali
que se passa praticamente todo o espetáculo. Ela é a cama, o quarto, a casa de
dois andares, tudo que se precisa para apresentar a história seguindo os mais
seguros princípios minimalistas possíveis.
Destaque
na peça para o trabalho dos atores Sandro Lucose (Elias) e Raquel Mützenberg, a
qual faz a filha de Virgínia com Elias. Tanto Elias quando a filha foram
cegados por Ismael (interpretado por Alexander Sil). O trabalho de criação dessa
cegueira para o palco foi intenso e individual. A pesquisa feita deixa claro
vestígios do filme “Janela da Alma” nas personagens, por mais individuais e
particulares que sejam.
No
caso de Sandro, a opção é por um cego que usa mais o corpo. Quando chamado,
reage com esse corpo vivo e sempre em estado de alerta, deixando os olhos fechados,
baixos e trêmulos. Já para Raquel, o trabalho é diferente e nos faz crer ainda
mais na cegueira da personagem, ao ponto de não permitir ao espectador
visualizar suas córneas, mas apenas o branco dos olhos. Como se ambos tivessem
sido mesmo queimados por ácido quando tinha apenas 2 anos, e uma fina membrana
cobrisse o local queimado no lugar das córneas.
O
trabalho de corpo e movimentos orquestrado por Elka Victorino junto aos atores
também impressiona. Apesar de não ser uma peça que exija muito das personagens
principais, no caso Virgínia (interpretada por Joana Seibel) e Ismael, muito
desse esforço é visto nas próprias primas virgens (Bia Napolitani, Milena
Machado e Rany Carneiro). Também é
preciso destacar o trabalho de Joana no papel de Virgínia. Mesmo dona de uma
voz grave poderosa, consegue transmitir ao mesmo tempo loucura, restos de
lucidez, as dores de uma alma que implora por libertação e lascividade. Isso
sem contar a mescla de amor e ódio que nutre por Ismael, a qual chega a
confundir até o espectador mais atento.
Mensagem
Muito
mais que falar apenas em preconceito racial, o espetáculo traz sim um pouco da
loucura e insensatez do ser humano. O comportamento da tia de Virgínia (Daniela
Leite) é quase que doentio. Primeiro ela permite a Ismael deflorar Virgínia do
modo mais irracional possível, mesmo contra a vontade da sobrinha. Para evitar
que as outras três filhas se envolvessem e decepcionassem com um homem, ela as
faz permanecer virgens. No entanto, quando duas delas morrem virgens, a última,
já na casa dos 40 anos, é indicada pela própria mãe para sempre ir a um lugar
onde um estuprador se encontra. O estupro é inevitável e a felicidade presente
na mãe porque a última filha não morreu virgem, latente.
A
peça é ainda um exercício de atenção. Diferente do que muitos se acostumaram, a
atenção não está apenas numa parte da cena. Há um foco principal, sem dúvida,
nos diálogos apresentados, por exemplo, entre Ismael e Elias. No entanto, por
vezes a atenção pode ser desviada para as mulheres que choram junto ao caixão
do terceiro filho de Ismael, morto ainda bebê pelas mãos da própria mãe
Virgínia. Há quem possa classificar isso como uma falha do diretor Sandro
Lucose, mas é um esforço a mais para o espectador numa peça que já exige
esforço redobrado da atenção do público para não perder nada. Seja para os mais
distraídos, ou aqueles que focam sua atenção num ponto específico, “Anjo Negro”
é um desafio tentador. A única ressalva que fica é para o tambor usado pelos
coveiros, um dos instrumentos usados para a sonoplastia feita ao vivo por eles
no palco. Por vezes, o uso do tambor (não me recordo no momento do nome
específico do instrumento utilizado, talvez um atabaque), encobre as falas de
uma ou outra personagem. Especialmente para quem fica mais próximo ao
instrumento nesse espaçamento de Grotowski e, consequentemente, distante do
diálogo em cena.