Unir
no mesmo palco artistas de diferentes estilos é um desafio a ser superado. A
direção das três escolas do Teatro Carlos Gomes (dança, música e teatro) topou enfrentar
esse embate com o projeto Orfeu 21. O sucesso foi eminente. Nas redes sociais,
muito se falou e elogiou tanto durante o processo como após o espetáculo
apresentado. Mas como todo casamento, nem tudo são flores, ainda mais quando
envolve três paixões, apesar de sempre muito próximas umas das outras (música,
dança e teatro).
No
palco, a mescla deu certo, mas ainda precisa ser aperfeiçoada. Afinal, não é
todo dia que se encontra uma bailarina que também saiba atuar cenicamente e
cantar com primor. Da mesma forma, não se viu atores profissionais dançando. Cada
um fez a sua parte, e em algumas das oportunidades em que se unia as artes
distintas, o resultado não era o esperado. Na cena logo após o casamento, a voz
de Guta (interpretada pela cantora Mayla Valentin), apesar afinada e bela para
o momento, perde em projeção e quase é abafada pelos instrumentos da orquestra.
Tal falha é ainda mais percebida quando a voz de Rogério (o ator Fábio Hostert),
entra num dueto. Mesmo na quarta fileira do teatro, pouco se ouvia e menos
ainda se entendia do vocal de Guta.
A
orquestra executou as músicas com perfeição, mas o primeiro ato dava a impressão
de que o diretor musical André de Souza optou pelo caminho mais fácil, sem dar
margem a grandes momentos da orquestra. A música soou quadrada, tendo seu ápice
no coro perfeito do anúncio do tiro recebido por Alice. O coro da Furb se
trajou como seres estranhos, de preto e roxo, que lembravam as Mênades,
mulheres selvagens que abafaram o som da lira de Orfeu e conseguiram matá-lo
por não conseguir resolver seus próprios problemas. O coro bem regido mostra o
desespero do momento e chega a assustar.
No
segundo ato, destaque para a dança no hospital Hades feita em sapateado por
membros do corpo clínico e doentes. Mesmo com um vocal preparado, os muitos
instrumentos da orquestra abafaram algumas vozes. Foi o caso do quarteto de
enfermeiros, pouco antes do sapateado. Em cena, a interpretação dos enfermeiros
impressiona, se destacando a atriz Sabrina Marthendal, a qual é atriz
profissional, integrante da Cia Carona de Teatro. O mesmo se vê em James Beck,
um dos personagens cômicos. Mesmo quando desafina ao cantar, consegue levar o
público a gargalhar. Mas nem todos eram atores e a atuação de alguns ficou
prejudicada por isso, como foi o caso de Fábio Hostert. A diferença de quando
contracena com atores profissionais, ou quando está sozinho, vem à tona quando
atua com quem é aluno da escola de música ou de dança, mesmo a atriz principal,
a bailarina Luca Martins, que interpreta Alice, não o deixa mostrar todo seu
potencial. Exceção aqui quando há a interação final entre os dois, no hospital.
Enquanto a personagem de Fábio está de olhos fechados, imaginando sua amada
Alice, ela dança com ele. Ali sim se vê o fervoroso amor do casal, o qual até
então parecia um pouco apagado.
No
hospital, quem rouba a cena é a chefe de enfermagem. Bernarda (interpretada
pela cantora Judejô) está primorosa em cena, tanto na interpretação, como na
hora de cantar. A canção que com as doentes Simone Mendes de Cordova, Taiara
Morgana Gerent e Bruna Ranguetti, mesmo trazendo à tona uma dura realidade, é
carregada de comicidade e não fica sem resposta do público, o qual não para de rir
por um instante. A voz de Judejô só não impressiona mais que da Dra. Perséfone
(Maeike Valentin), uma das poucas a conseguir transmitir mais emoção pelo canto
que pela interpretação. O dueto com Rogério (Fábio Hostert) fez um bom casamento
das duas vozes que se intercalam.
Por
fim, resta dizer que o espetáculo conseguiu uma técnica incrível ao utilizar
todos os recursos possíveis do auditório principal do Carlos Gomes. O palco giratório
para mudança de cenário dá um ar quase mágico a essas trocas, méritos a Enzo
Montti, mas um objeto cênico poderia ser descartado. Apesar da mensagem intrínseca
que a lira carrega até pelos textos nos quais Orfeu 21 foi baseado pelo
dramaturgo Gregory Haertel, poderia ter ficado fora da canção interpretada pela
Música (Paula Tessarollo). Em um musical, quando um instrumento entra em cena,
espera-se que ele seja utilizado, no entanto, não é assim que a lira carregada
por Música é usada. Ela até encena algumas notas, o que deixa ainda mais falso
o uso do objeto.
As
entradas e saídas das personagens, as quais levam as personagens mais perto do
público, seguindo pela linguagem de Grotowski, foram bem arquitetadas pelo
diretor-geral artístico Pepe Sedrez, bem como o uso de um dos camarotes pelo Policial
(Leomar Peruzzo). Elogios aqui são necessários ao desenho e operação de luz de
Giba de Oliveira, aos figurinos desenhados por Rose Reddin e às coreografias
pensadas por Luca Martins, Michelle Beatriz Nicoletti e Beatriz Niemeyer. Sem falar
que deve ter sido difícil maquiar os atores para que ficassem tão doentes
quanto aparentavam. Da parte da música, que no segundo ato brincou mais que no
primeiro, faltou apenas um rock, interpretado talvez pela própria banda Orfeus,
a qual estava no palco com instrumentos em punho e ganhou uma roupagem de banda
de rock. A voz de Hostert também poderia ter seus agudos melhor explorados e,
nesse rock que faltou, algo mais rasgado. Enfim, para um primeiro trabalho
desse calibre do Teatro Carlos Gomes, o resultado final até surpreende, pois
muitos dos que estão no palco não são profissionais, mas alunos das três escolas
que compõem o Carlos Gomes. Este não deve ser o último trabalho desse naipe,
esperamos que não seja, e que muitos outros musicais venham.
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