quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Uma peça para quem não gosta de Nelson Rodrigues


Pode parecer estranho que uma peça escrita por Nelson Rodrigues seja direcionada a quem não gosta das obras dele. Mas devemos considerar que este é um espetáculo de raras montagens. As obras mais conhecidas do dramaturgo estão repletas de palavrões e, muito diferente de “A vida como ela é”, “Anjo Negro” não possui momentos de humor. Talvez exceto pelos risos retirados pela plateia pelas atrizes que fazem as primas solteironas e virgens de Virgínia.
O texto de Nelson já nasce intimista. Somado à interação com o público no palco montado sob as orientações do famoso diretor Grotowski, difícil dizer se haveria forma mais intimista de se apresentar tal obra. A cenografia da Cia Mosaico, assinada por Antônio de Pádua, usa uma grande estrutura central. É ali que se passa praticamente todo o espetáculo. Ela é a cama, o quarto, a casa de dois andares, tudo que se precisa para apresentar a história seguindo os mais seguros princípios minimalistas possíveis.
Destaque na peça para o trabalho dos atores Sandro Lucose (Elias) e Raquel Mützenberg, a qual faz a filha de Virgínia com Elias. Tanto Elias quando a filha foram cegados por Ismael (interpretado por Alexander Sil). O trabalho de criação dessa cegueira para o palco foi intenso e individual. A pesquisa feita deixa claro vestígios do filme “Janela da Alma” nas personagens, por mais individuais e particulares que sejam.
No caso de Sandro, a opção é por um cego que usa mais o corpo. Quando chamado, reage com esse corpo vivo e sempre em estado de alerta, deixando os olhos fechados, baixos e trêmulos. Já para Raquel, o trabalho é diferente e nos faz crer ainda mais na cegueira da personagem, ao ponto de não permitir ao espectador visualizar suas córneas, mas apenas o branco dos olhos. Como se ambos tivessem sido mesmo queimados por ácido quando tinha apenas 2 anos, e uma fina membrana cobrisse o local queimado no lugar das córneas.
O trabalho de corpo e movimentos orquestrado por Elka Victorino junto aos atores também impressiona. Apesar de não ser uma peça que exija muito das personagens principais, no caso Virgínia (interpretada por Joana Seibel) e Ismael, muito desse esforço é visto nas próprias primas virgens (Bia Napolitani, Milena Machado e Rany Carneiro).  Também é preciso destacar o trabalho de Joana no papel de Virgínia. Mesmo dona de uma voz grave poderosa, consegue transmitir ao mesmo tempo loucura, restos de lucidez, as dores de uma alma que implora por libertação e lascividade. Isso sem contar a mescla de amor e ódio que nutre por Ismael, a qual chega a confundir até o espectador mais atento.

Mensagem
Muito mais que falar apenas em preconceito racial, o espetáculo traz sim um pouco da loucura e insensatez do ser humano. O comportamento da tia de Virgínia (Daniela Leite) é quase que doentio. Primeiro ela permite a Ismael deflorar Virgínia do modo mais irracional possível, mesmo contra a vontade da sobrinha. Para evitar que as outras três filhas se envolvessem e decepcionassem com um homem, ela as faz permanecer virgens. No entanto, quando duas delas morrem virgens, a última, já na casa dos 40 anos, é indicada pela própria mãe para sempre ir a um lugar onde um estuprador se encontra. O estupro é inevitável e a felicidade presente na mãe porque a última filha não morreu virgem, latente.
A peça é ainda um exercício de atenção. Diferente do que muitos se acostumaram, a atenção não está apenas numa parte da cena. Há um foco principal, sem dúvida, nos diálogos apresentados, por exemplo, entre Ismael e Elias. No entanto, por vezes a atenção pode ser desviada para as mulheres que choram junto ao caixão do terceiro filho de Ismael, morto ainda bebê pelas mãos da própria mãe Virgínia. Há quem possa classificar isso como uma falha do diretor Sandro Lucose, mas é um esforço a mais para o espectador numa peça que já exige esforço redobrado da atenção do público para não perder nada. Seja para os mais distraídos, ou aqueles que focam sua atenção num ponto específico, “Anjo Negro” é um desafio tentador. A única ressalva que fica é para o tambor usado pelos coveiros, um dos instrumentos usados para a sonoplastia feita ao vivo por eles no palco. Por vezes, o uso do tambor (não me recordo no momento do nome específico do instrumento utilizado, talvez um atabaque), encobre as falas de uma ou outra personagem. Especialmente para quem fica mais próximo ao instrumento nesse espaçamento de Grotowski e, consequentemente, distante do diálogo em cena.

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