Segundo
a Cia do Giro, de Porto Alegre, os bufões são considerados os filhos do demônio
que oferecem o riso e a paródia aos mortais. Eles oferecem uma crítica ferina à
sociedade e denunciam a falsa moral encoberta por atitudes polidas.
Seguindo
essa máxima, Júlia e Palheta, personagens interpretados pelos atores Yonara
Marques e Reveraldo Joaquim, do Cirquinho do Revirado, de Criciúma, chocam o público presente na rua. Eles trazem à
tona vários lados a serem questionados, desde o modo como vivem pessoas à
margem da sociedade, o que precisam fazer para se virar e até o quanto um
aleijado pode “se aproveitar” dos que cuidam dele. É essa inversão de papeia
onde, como no bordão tão apropriado de Palheta “Pensa que é fácil ter pernas,
Júlia?”.
Como
bons bufões, jogam na cara do espectador o quão o ser humano pode ser vil e
traiçoeiro. Mas a dupla também se apropria de técnicas do palhaço em momentos
mais singelos, como quando Júlia lava os pés de Palheta.
Júlia
ainda teve de se conter em certas cenas pelo público ser formado por muitas
crianças. Yonara lembra ao fim do espetáculo que a classificação é “Livre” por
ser teatro de rua e não haver como impedir as pessoas de estarem ali, mas que
existe uma certa restrição na idade do espectador. Não fosse isso, a cena da
banana e do pé talvez tivesse maior ensejo dentro do que o enredo pedia.
Apesar
dos protestos de algumas educadoras em determinados pontos, as crianças parece
que sabiam muito bem o que estava acontecendo, talvez com uma leitura melhor
que a dos adultos. Exemplo propício é quando Júlia e Palheta vão se beijar. As
crianças gritam para isso não acontecer e um deles chega a dizer: “Tem criança
aqui”. Mas quando Júlia convida Palheta para se esconderem nos restos do circo
incendiado que carregam consigo e fazerem “frusca frusca”, o próprio Palheta
afirma que as crianças não sabem o que é frusca frusca. O mesmo menino que não
queria o beijo da dupla por terem crianças presentes, um garoto com não
aparentava ter mais de 10 anos, grita em alto e bom som: “Eu sei o que é”.
O
teatro de rua também exige do ator o domínio do público e não há público mais
sincero que o de crianças. Se não gostam, não gostam e pronto. Elas interagem
ao ponto do espetáculo terminar e ainda exigirem de volta o sapato roubado
pelos bufões de uma espectadora. Elas vaiam, enquanto os adultos acompanham
tudo calados com jeito de “é só brincadeira”, mas o tapa foi dado. No fundo, as
pessoas vão para casa incomodadas com aquilo tudo, especialmente com a aleijada
que não é aleijada e ainda reclama das esmolas dadas pelo público, uma das
artimanhas e provocações típicas do diretor Pepe Sedrez.
No
domínio da cena, Yonara e Reveraldo conseguem brincar com as crianças, mesmo
quando elas estão agitadas. A pouca educação característica dos bufões remete o
público ao riso a cada novo “cala boca demonho”. As atitudes de alguns alunos
que, para as professoras podem atrapalhar o “teatrinho”, obrigam o ator a
rebolar no palco e aproveitar aquela intervenção como material cênico. Sem
isso, que voltássemos para o elisabetano com total distanciamento entre plateia
e palco.
Mais
que relatar a miséria de dois mendigos, o espetáculo usa quase uma
metalinguagem e chega a emocionar o artista que sabe o que é “conseguir o
dinheiro suficiente para garantir o hoje, e o amanhã a gente vê”.