quarta-feira, 30 de maio de 2012

Como bom bufão, Júlia incomoda


Segundo a Cia do Giro, de Porto Alegre, os bufões são considerados os filhos do demônio que oferecem o riso e a paródia aos mortais. Eles oferecem uma crítica ferina à sociedade e denunciam a falsa moral encoberta por atitudes polidas.

Seguindo essa máxima, Júlia e Palheta, personagens interpretados pelos atores Yonara Marques e Reveraldo Joaquim, do Cirquinho do Revirado, de Criciúma, chocam o público presente na rua. Eles trazem à tona vários lados a serem questionados, desde o modo como vivem pessoas à margem da sociedade, o que precisam fazer para se virar e até o quanto um aleijado pode “se aproveitar” dos que cuidam dele. É essa inversão de papeia onde, como no bordão tão apropriado de Palheta “Pensa que é fácil ter pernas, Júlia?”.

Como bons bufões, jogam na cara do espectador o quão o ser humano pode ser vil e traiçoeiro. Mas a dupla também se apropria de técnicas do palhaço em momentos mais singelos, como quando Júlia lava os pés de Palheta.

Júlia ainda teve de se conter em certas cenas pelo público ser formado por muitas crianças. Yonara lembra ao fim do espetáculo que a classificação é “Livre” por ser teatro de rua e não haver como impedir as pessoas de estarem ali, mas que existe uma certa restrição na idade do espectador. Não fosse isso, a cena da banana e do pé talvez tivesse maior ensejo dentro do que o enredo pedia.

Apesar dos protestos de algumas educadoras em determinados pontos, as crianças parece que sabiam muito bem o que estava acontecendo, talvez com uma leitura melhor que a dos adultos. Exemplo propício é quando Júlia e Palheta vão se beijar. As crianças gritam para isso não acontecer e um deles chega a dizer: “Tem criança aqui”. Mas quando Júlia convida Palheta para se esconderem nos restos do circo incendiado que carregam consigo e fazerem “frusca frusca”, o próprio Palheta afirma que as crianças não sabem o que é frusca frusca. O mesmo menino que não queria o beijo da dupla por terem crianças presentes, um garoto com não aparentava ter mais de 10 anos, grita em alto e bom som: “Eu sei o que é”.

O teatro de rua também exige do ator o domínio do público e não há público mais sincero que o de crianças. Se não gostam, não gostam e pronto. Elas interagem ao ponto do espetáculo terminar e ainda exigirem de volta o sapato roubado pelos bufões de uma espectadora. Elas vaiam, enquanto os adultos acompanham tudo calados com jeito de “é só brincadeira”, mas o tapa foi dado. No fundo, as pessoas vão para casa incomodadas com aquilo tudo, especialmente com a aleijada que não é aleijada e ainda reclama das esmolas dadas pelo público, uma das artimanhas e provocações típicas do diretor Pepe Sedrez.

No domínio da cena, Yonara e Reveraldo conseguem brincar com as crianças, mesmo quando elas estão agitadas. A pouca educação característica dos bufões remete o público ao riso a cada novo “cala boca demonho”. As atitudes de alguns alunos que, para as professoras podem atrapalhar o “teatrinho”, obrigam o ator a rebolar no palco e aproveitar aquela intervenção como material cênico. Sem isso, que voltássemos para o elisabetano com total distanciamento entre plateia e palco.

Mais que relatar a miséria de dois mendigos, o espetáculo usa quase uma metalinguagem e chega a emocionar o artista que sabe o que é “conseguir o dinheiro suficiente para garantir o hoje, e o amanhã a gente vê”.

domingo, 6 de maio de 2012

Triângulo amoroso com arestas a aparar


Unir no mesmo palco artistas de diferentes estilos é um desafio a ser superado. A direção das três escolas do Teatro Carlos Gomes (dança, música e teatro) topou enfrentar esse embate com o projeto Orfeu 21. O sucesso foi eminente. Nas redes sociais, muito se falou e elogiou tanto durante o processo como após o espetáculo apresentado. Mas como todo casamento, nem tudo são flores, ainda mais quando envolve três paixões, apesar de sempre muito próximas umas das outras (música, dança e teatro).

No palco, a mescla deu certo, mas ainda precisa ser aperfeiçoada. Afinal, não é todo dia que se encontra uma bailarina que também saiba atuar cenicamente e cantar com primor. Da mesma forma, não se viu atores profissionais dançando. Cada um fez a sua parte, e em algumas das oportunidades em que se unia as artes distintas, o resultado não era o esperado. Na cena logo após o casamento, a voz de Guta (interpretada pela cantora Mayla Valentin), apesar afinada e bela para o momento, perde em projeção e quase é abafada pelos instrumentos da orquestra. Tal falha é ainda mais percebida quando a voz de Rogério (o ator Fábio Hostert), entra num dueto. Mesmo na quarta fileira do teatro, pouco se ouvia e menos ainda se entendia do vocal de Guta.

A orquestra executou as músicas com perfeição, mas o primeiro ato dava a impressão de que o diretor musical André de Souza optou pelo caminho mais fácil, sem dar margem a grandes momentos da orquestra. A música soou quadrada, tendo seu ápice no coro perfeito do anúncio do tiro recebido por Alice. O coro da Furb se trajou como seres estranhos, de preto e roxo, que lembravam as Mênades, mulheres selvagens que abafaram o som da lira de Orfeu e conseguiram matá-lo por não conseguir resolver seus próprios problemas. O coro bem regido mostra o desespero do momento e chega a assustar.

No segundo ato, destaque para a dança no hospital Hades feita em sapateado por membros do corpo clínico e doentes. Mesmo com um vocal preparado, os muitos instrumentos da orquestra abafaram algumas vozes. Foi o caso do quarteto de enfermeiros, pouco antes do sapateado. Em cena, a interpretação dos enfermeiros impressiona, se destacando a atriz Sabrina Marthendal, a qual é atriz profissional, integrante da Cia Carona de Teatro. O mesmo se vê em James Beck, um dos personagens cômicos. Mesmo quando desafina ao cantar, consegue levar o público a gargalhar. Mas nem todos eram atores e a atuação de alguns ficou prejudicada por isso, como foi o caso de Fábio Hostert. A diferença de quando contracena com atores profissionais, ou quando está sozinho, vem à tona quando atua com quem é aluno da escola de música ou de dança, mesmo a atriz principal, a bailarina Luca Martins, que interpreta Alice, não o deixa mostrar todo seu potencial. Exceção aqui quando há a interação final entre os dois, no hospital. Enquanto a personagem de Fábio está de olhos fechados, imaginando sua amada Alice, ela dança com ele. Ali sim se vê o fervoroso amor do casal, o qual até então parecia um pouco apagado.

No hospital, quem rouba a cena é a chefe de enfermagem. Bernarda (interpretada pela cantora Judejô) está primorosa em cena, tanto na interpretação, como na hora de cantar. A canção que com as doentes Simone Mendes de Cordova, Taiara Morgana Gerent e Bruna Ranguetti, mesmo trazendo à tona uma dura realidade, é carregada de comicidade e não fica sem resposta do público, o qual não para de rir por um instante. A voz de Judejô só não impressiona mais que da Dra. Perséfone (Maeike Valentin), uma das poucas a conseguir transmitir mais emoção pelo canto que pela interpretação. O dueto com Rogério (Fábio Hostert) fez um bom casamento das duas vozes que se intercalam.

Por fim, resta dizer que o espetáculo conseguiu uma técnica incrível ao utilizar todos os recursos possíveis do auditório principal do Carlos Gomes. O palco giratório para mudança de cenário dá um ar quase mágico a essas trocas, méritos a Enzo Montti, mas um objeto cênico poderia ser descartado. Apesar da mensagem intrínseca que a lira carrega até pelos textos nos quais Orfeu 21 foi baseado pelo dramaturgo Gregory Haertel, poderia ter ficado fora da canção interpretada pela Música (Paula Tessarollo). Em um musical, quando um instrumento entra em cena, espera-se que ele seja utilizado, no entanto, não é assim que a lira carregada por Música é usada. Ela até encena algumas notas, o que deixa ainda mais falso o uso do objeto.
As entradas e saídas das personagens, as quais levam as personagens mais perto do público, seguindo pela linguagem de Grotowski, foram bem arquitetadas pelo diretor-geral artístico Pepe Sedrez, bem como o uso de um dos camarotes pelo Policial (Leomar Peruzzo). Elogios aqui são necessários ao desenho e operação de luz de Giba de Oliveira, aos figurinos desenhados por Rose Reddin e às coreografias pensadas por Luca Martins, Michelle Beatriz Nicoletti e Beatriz Niemeyer. Sem falar que deve ter sido difícil maquiar os atores para que ficassem tão doentes quanto aparentavam. Da parte da música, que no segundo ato brincou mais que no primeiro, faltou apenas um rock, interpretado talvez pela própria banda Orfeus, a qual estava no palco com instrumentos em punho e ganhou uma roupagem de banda de rock. A voz de Hostert também poderia ter seus agudos melhor explorados e, nesse rock que faltou, algo mais rasgado. Enfim, para um primeiro trabalho desse calibre do Teatro Carlos Gomes, o resultado final até surpreende, pois muitos dos que estão no palco não são profissionais, mas alunos das três escolas que compõem o Carlos Gomes. Este não deve ser o último trabalho desse naipe, esperamos que não seja, e que muitos outros musicais venham.